Política séria: único jogo possível

No meio da noite acordo. Ouço o latido de um cachorro, ao qual logo se juntam dois, três, quatro… quantos a minha imaginação permitir. As vozes dos cães...

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No meio da noite acordo. Ouço o latido de um cachorro, ao qual logo se juntam dois, três, quatro… quantos a minha imaginação permitir. As vozes dos cães são iguais. Latidos – longos, roucos, curtos, uivados, desesperados – formam na madrugada um coral desafinado, que desafia a noite quebrando o silêncio da madrugada.

Embalada por esse coral, não durmo. Fico a pensar que fato uniu esses cães em torno desse ritual noturno, dando-lhes a coragem e a ousadia para gritar, quando deveriam calar e guardar o sono de quem dorme, na noite, o cansaço do dia. Jogo fora, então, a lógica, o racional, a razão… Entrego-me a um primitivismo, à irracionalidade, ao ilógico e imagino… Imagino que, por trás da escuridão, a noite esconde seus mistérios e que esses mistérios são tão misteriosos que os homens não os sentem nem os percebem. Apenas os cães, intérpretes da noite, os captam das estrelas e com eles brincam nas ruas da minha casa.

Entre os latidos não há guardas-noturnos, motoristas desequilibrados, prostitutas desassistidas, bêbados errantes, jovens desafiadores, nem boêmios, nem passos nas calçadas. Nos enigmas da noite, não há lugar para ninguém. Enquanto os cães executam com suas vozes os hinos do desconhecido, todos param paralisados pelo eco dos mistérios da noite, que não se traduzem no escuro e nem se delineiam em forma ou apresentação.

O que eles veem que eu não vejo? O que eles sentem que eu não sinto? O que eles percebem que eu não percebo? O que eles captam que eu não sou capaz de captar? Será, por um acaso, uma “alma penada”? Um espírito errante? Um disco voador? Um ser de outro planeta? Uma bruxa sobrevoando os ares, montada numa vassoura? Uma estrela que caiu do céu?

Recuso-me a pensar que apenas briguem entre si, que disputem um osso, que espreitem uma presa ou que afugentem um ladrão… Não quero, na madrugada, quando acordo ao som desse coral desafinado, ser lógica e racional. Prefiro entregar-me aos devaneios e nesses devaneios imaginar, numa paródia mal feita, que “entre o dia e a noite há muito mais mistérios do que sonha nossa vã filosofia”. E, assim, adormecer novamente.

A noite termina. O dia começa. Não há mais latidos. No lugar dos cães, há pássaros que cantam a harmonia do sol, num coral de vozes afinadas. Não há mais mistérios, não há mais enigmas, não há mais espaço para imaginação. É o Iluminismo vindo à tona, quebrando o encanto das histórias de assombração. O lobisomem voltou à forma humana e está sentado à frente de um computador. A bruxa malvada virou dona-de-casa e com sua vassoura varre agora a calçada. A alma penada e o espírito errante começam mais um dia de batalha, enfrentando cedo o coletivo urbano. O disco voador ganhou quatro rodas e cruza acelerado as ruas da cidade. O ser de outro planeta vai para casa, arrepiado de frio, carregando um pão debaixo do braço.

A estrela abriu suas asas e subiu aos céus para fazer, invisível, companhia ao sol. Ah! E os cães? Os cães dormem sossegados e sossegados ficarão até que a noite venha para, então, recomeçarem seu ritual noturno e me acordarem novamente com seu coral desafinado, o já costumeiro coral da noite. (Reedição – 30/08/2003)

Dinalva Agissé Alves de Souza

dinalvas@urisan.tche.br

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